Canto dos Torna-Viagem
José Mário Branco (Resistir é vencer, 2004)
Foi no sulco da viagem
Já sem armas nem bagagem
Nem os brazões da equipagem
Foi ao voltar
Pátria moratóriaNo coração da históriaQue consumiste a glóriaNum jantar
Foi como se PortugalP'ra seu bem e p'ra seu malAndasse em busca dum finalP'ra começar
Ávida violênciaReverso da inocênciaSal da inconsciênciaQue há no mar
Império tão pequeninoDe portulano caprinoBolsos de sina e de sinoEm cada mão
Pátria imagináriaDe concistência váriaAfirmação diáriaDo teu não
As malas dos portuguesesSão como os olhos das rezesQue se mastigam três vezesEm cada chão
Cândida ignorânciaGrande desimportânciaOs frutos da errânciaJá lá vão
Ai Senhora dos Navegantes me valeiDe África, do sal e do mar só eu sobreiFoi p'ra me encontrar que amanhã já me perdiLonge vai o tempo em que eu já não estou aqui
Ai Senhora dos Talvez-Muitos-Mais-SinaisSocorrei estes desperdícios coloniaisFoi na noite fria que o dia me cegouInda agora fui, inda agora cá não estou
Ai Senhora dos Esquecidos me lembraiO caminho que p'ra lá vem e p'ra cá vaiEtecetera e tal, Portugal é nós no marInda agora vim e estou longe de chegar
Ai Senhora dos meus Iguais que eu subtraíFoi pataca a mim e não foi pataca a tiSe é tão grande a alma na palma do meu serAlgum dia eu vou finalmente acontecer
Por que não tentar outro ponto de vista?A história dos outros, quem a contará?Se qualquer colónia sem colonialistaSão os que já estavam lá
Tentemos então ver a coisa ao contrárioDo ponto de vista de quem não chegouPois se eu fosse um preto chamado Zé MárioEu não era quem eu sou
Os navegadores chegaram cá a casaE foi tudo novo p'ra eles e p'ra mimA cruz e a espada e os olhos em brasaPor que me trataste assim?
Não é culpa nossa se quem p'ra cá veioNão se incomodou ao saber do horrorA história não olha a quem fica no meioE o que foi é de quem fôr